Folha de S. Paulo


Indicar Kassab é brincar com fogo

A crise urbana no Brasil é uma ferida aberta. Após a urbanização acelerada na segunda metade do século 20, o país tem hoje 85% de sua população nas cidades. Cidades segregadas e marcadas por problemas explosivos como a habitação, a mobilidade, o saneamento básico e a oferta de serviços públicos. Há tempos, desde a década de 1980, movimentos populares e urbanistas têm defendido uma profunda reforma urbana para lidar com esta crise.

Em 2003, quando Lula criou o Ministério das Cidades, acendeu-se uma esperança de que enfim haveria uma política de reforma urbana no Brasil. Esperança que foi alimentada com a indicação de Olívio Dutra (PT) como ministro e de gente comprometida com o direito à cidade –como Ermínia Maricato e Raquel Rolnik– em sua equipe.

Não tardou, porém, para a esperança converter-se em desilusão. Em 2005, enfraquecido por denúncias de corrupção e em nome da tal "governabilidade", Lula entregou o Ministério para o PP (Partido Progressista), de Paulo Maluf. Desde então, há dez anos, esta turma permanece encastelada por lá.

Como disse o urbanista Nabil Bonduki em artigo recente nesta Folha foram dez anos de desarticulação da política urbana. Foram dez anos de crescimento do investimento público nas cidades –especialmente em habitação–, mas também de crescimento da especulação imobiliária, de aprofundamento do caos da mobilidade e da desigualdade expressa na ampliação das periferias.

A crise urbana agravou-se. A política de incentivo à indústria automobilística e ao transporte individual ajudou a economia a crescer, mas levou as cidades ao colapso da mobilidade. A política de crédito barato para o setor da construção civil gerou empregos e lucros recordes para as construtoras e incorporadoras, mas produziu uma especulação imobiliária proibitiva. Em São Paulo e Rio de Janeiro, megalópoles que são termômetros do Brasil urbano, o aumento médio do valor da terra foi de 215% e 262%, respectivamente.

Milhões de trabalhadores mais pobres tiveram suas economias espoliadas pelo aumento dos aluguéis. A voracidade do mercado imobiliário produziu ainda centenas de despejos e remoções a cada ano. As remodelações urbanas para a Copa e a Olimpíada pioraram ainda mais este cenário, o que mostra que já passou da hora de combatermos a ideologia do crescimento econômico como um bem em si mesmo. Tem e sempre teve efeitos colaterais perversos para os mais pobres. Boa parte destes efeitos, no caso do recente ciclo de crescimento, concentraram-se nas cidades.

E o Ministério das Cidades? Além de não promover nenhuma grande política urbana articulada, nem sequer estabeleceu contratendências para lidar com a crise das cidades. Assistiu sem reagir a perda da capacidade do poder público em planejar e implementar políticas urbanas, diante do avanço incontrolado do setor imobiliário e da construção. Deixou o Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, bem guardado no fundo de alguma gaveta ministerial.

Empoderadas pela liquidez do crédito público e pela força política decorrente do financiamento de campanhas eleitorais, as construtoras definiram os rumos do crescimento das grandes cidades e impuseram o seu planejamento. Planejamento baseado na rentabilidade dos investimentos, tratando a cidade como mero ativo financeiro. Evidentemente: esta é a lógica do setor privado. O que não é aceitável é que o Estado permita que esta lógica prevaleça sobre o interesse social das maiorias.

Poderiam retrucar mostrando o Minha Casa Minha Vida. Mas infelizmente, apesar do avanço na questão do subsídio, este programa atuou reforçando a lógica do mercado e da segregação. Suas moradias estão essencialmente em regiões periféricas e seu agente principal de execução e projeto continuam sendo as construtoras.

Assim, o balanço do Ministério das Cidades em termos de promover o direito à cidade é catastrófico. A política urbana está cada vez mais privatizada. As cidades brasileiras são barris de pólvora. Já está claro o quanto é essencial e urgente a abertura de um debate sobre mudanças, comprometido com um projeto de reforma urbana estrutural e popular. E, além disso, entender que isso significa enfrentar interesses poderosos de quem hoje lucra com este modelo de cidade.

Mas há quem insista em confundir mudança com marcha a ré. Propor, sugerir ou especular sobre o nome de Gilberto Kassab para assumir o Ministério das Cidades é uma provocação. Uma provocação às mobilizações de junho de 2013 que nasceram entorno do tema da mobilidade. Uma provocação às mobilizações que neste ano denunciaram os efeitos urbanos impopulares da Copa. É uma provocação a todos aqueles que lutam por cidades mais democráticas e menos fascistas.

Kassab (PSD), tal como Kátia Abreu (PMDB), é um símbolo de políticas antipopulares. Ela no campo, ele na cidade. Foi o prefeito do mercado imobiliário, do favorecimento às empreiteiras e que engavetou o Plano Diretor de São Paulo por seis anos. Sua gestão foi marcada pelo "boom" dos incêndios criminosos em favelas e por despejos ilegais e violentos. O Ministério das Cidades já não atua pela reforma urbana, mas pode tornar-se agora promotor ativo da contrarreforma urbana.

Se indicar Kassab, Dilma demonstrará que não aprendeu as lições das mobilizações urbanas dos últimos anos. E, no contexto explosivo de nossas cidades, estará verdadeiramente brincando com fogo.

#CASSAÇÃO!

Não posso deixar de somar-me a esta campanha. Bolsonaro é um sociopata e criminoso reincidente. Deveria estar na cadeia, não no Congresso. Se os deputados não cassarem Bolsonaro mostrarão conivência com a apologia ao estupro e à tortura. Mais que isso, reforçarão a percepção de que lugar de bandido é no Congresso.


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