Folha de S. Paulo


Que ódio

Detesto usar este espaço para falar sobre coisas que odeio. A razão é simples: a crônica é um pedaço de amor cercado de ódio por todos os lados. A crítica odeia o filme, o editorial odeia o governo, a carta do leitor odeia o editorial (e o governo).

Queria que este espaço fosse dedicado aos passarinhos que pousaram no parapeito. Mas até hoje nenhum passarinho pousou no meu parapeito –os cocôs de passarinho, em compensação, não param de surgir.
O ódio, na maior parte das vezes, é irracional.

Odeio os carros quando tô a pé. Odeio os pedestres quando tô de bicicleta. Odeio os ônibus quando tô de carro. Odeio os ônibus quando tô de ônibus. Odeio o mundo quando eu acordo. Odeio cigarro. E odeio quem se incomoda com cigarro quando eu tô fumando. Odeio acordar cedo e odeio acordar tarde. Odeio o Brasil e odeio, ao mesmo tempo, as pessoas que odeiam o Brasil.

Tem ódio que não faz o menor sentido. Mas tem ódio que faz.

Por exemplo: sem nenhuma razão plausível, acrescentaram um pitoco no meio da tomada, tornando obsoletos todos os eletrodomésticos do país. Não por acaso a tomada tem três pinos como um tridente: eu tenho certeza de que foi obra do demônio. Ou do Eduardo Cunha. O que dá no mesmo.

Mas pior que a tomada de três pinos (tá bom: tão ruim quanto) é o novo (que já nasceu velho) acordo (com o qual ninguém está de acordo) ortográfico. O desacordo é a tomada de três pinos da língua portuguesa.

Não bastasse termos poucos livros e uma população que não lê, os gramáticos tornaram obsoletos todos os livros do país. De 1911 até hoje, o português brasileiro sofreu cinco reformas ortográficas. Nesse mesmo período, o inglês, o francês e o espanhol não sofreram nenhuma.

E o pior: a reforma não faz o menor sentido. Caiu o hífen em pé de moleque. Mas não caiu em pé-de-meia. Caiu em pão de ló. Mas não em pão-de-leite. Caiu o hífen de copiloto, e junto com ele o de cocomandante. (Sim, isso mesmo. Agora o cocô é o mandante.)

Dos acentos, o trema é o que faz menos falta (embora tivesse grande valor afetivo). Agora "para" de parar se escreve igual a para de "em direção a". O que antes parava agora não para mais. A manchete "trânsito para São Paulo" pode significar duas coisas opostas. A população que já não sabia escrever agora sabe menos.

Quem ganha com isso? Os gramáticos, claro, classe com a qual ninguém se importa até o momento em que se proclamam indispensáveis. Os gramáticos são os fabricantes de benjamim da língua portuguesa.


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