Foi, durante anos, um acordo tácito, uma pequena tradição familiar, uma maneira de começar o domingo pra valer. A corrida terminava, e o telefone tocava. Na minha casa ou na do meu tio Neto.
Quem telefonava, claro, era sempre o provocador. A intenção era cutucar, espezinhar, tirar sarro do derrotado. Invariavelmente, o vencedor começava cantarolando o "Tema da Vitória". Seguiam-se os mais criativos impropérios, daqueles que só amigos são capazes de conceber e aceitar numa boa.
Ele era Piquet. Eu, Senna. E não entendia o porquê da preferência do meu tio. Afinal, naquele final dos anos 80, início dos 90, quase sempre era minha a primazia de disparar os ultrajes telefônicos.
O tempo passou, e quis o destino que eu acabasse trabalhando com esse negócio. Foram anos de viagens, histórias ouvidas, entrevistas feitas. Mas, principalmente, foram anos que passaram. Sinal de algum (pouco, talvez) amadurecimento.
Fato é que, resultado disso tudo, hoje minha visão é outra. Com direito a uma tese que pode até desagradar a alguns de meus ex-colegas de torcida, mas que lá vai.
Naquela época, para uma criança ou adolescente, o caminho natural era torcer por Senna. Os mais vividos ficavam com o "inimigo" Piquet. O primeiro era mais pirotécnico, espetacular, simpático às câmeras. Gostava e cultivava a imagem de super-herói. Voltava a Cumbica após cada vitória, via Deus na curva, falava em "intuição", chorava, se emocionava... E, pô, namorava a Xuxa! O segundo... Dá pra imaginar um personagem de HQ infantil chamado "Piquêzinho"? Melhor não.
A reflexão veio à tona porque hoje Piquet faz 60 anos. Não, ele não foi um piloto tão genial quanto Senna, não está no panteão dos maiores, mas deixou as marcas da criatividade, da irreverência (às vezes descambando para a sacanagem, é verdade), da busca por brechas no regulamento, do trabalho duro que às vezes não aparece tanto.
Foi um dos últimos representantes de uma geração que se preocupava mais com os resultados na pista do que com a mise-en-scène fora dela --é por isso que Raikkonen soa tão retrô nos dias atuais.
Piquet era um mix mais difícil de compreender, de aceitar como "o nosso representante" --como se precisasse haver um, ou só um. Era mais real e menos ideal. Era o anti-herói daquela polarização que aflorava no Brasil nos domingos de manhã.
Hoje, aos 60, até devido à estiagem de resultados do país na F-1, colhe um pouco mais do reconhecimento que nunca perseguiu. (E provavelmente não dá a mínima.) Hoje, mais próximo dos 40 que dos 30, entendo perfeitamente o tio Neto.
MUDANÇA
Como você deve ter acabado de perceber, esta coluna volta a ser publicada às sextas-feiras.
fabio.seixas@grupofolha.com.br