Folha de S. Paulo


Sudetenland

Vladimir Putin tem algo a celebrar. Duas semanas atrás, o "Washington Post" publicou um artigo de Anne-Marie Slaughter no qual mencionam-se os "profundos laços históricos e culturais" que unem a Rússia à Crimeia e aos outros três semiprotetorados secessionistas gerados por Moscou (Transdnístria, Abkhazia e Ossétia do Sul). Sob Hillary Clinton, Slaughter ocupou uma diretoria do Departamento de Estado. Os argumentos dela ecoaram, no Brasil, pelas vozes do chanceler Luiz Alberto Figueiredo e, aqui e ali, em textos de colunistas distraídos. Ela –e eles– repetiriam a narrativa hoje, quando Moscou fabrica um cenário similar ao da Crimeia no leste da Ucrânia?

A ordem interestatal sustenta-se sobre o respeito aos princípios da soberania e autodeterminação nacionais, que repousam sobre o conceito do Estado-nação como um contrato político entre cidadãos. A Escócia fará um referendo sobre a secessão, cuja legalidade deriva do "contrato" que define a Grã-Bretanha como um Estado plurinacional. Com base no contrato constitucional que define a Espanha como um Estado unitário, o Parlamento espanhol acaba de rejeitar a solicitação da Catalunha de um referendo secessionista. O referendo na Crimeia violou a Constituição ucraniana: ele seria ilegal mesmo se não fosse amparado pela presença ostensiva de forças russas de ocupação.

Na linha sugerida por Slaughter, os tais distraídos justificaram a anexação sob o argumento de que a Crimeia é habitada por uma maioria de russos étnicos –e especularam sobre os resultados supostamente óbvios de um hipotético referendo legal. Se atentassem para os fundamentos implícitos de suas ideias, teriam que declarar a falência do conceito contratual do Estado-nação, substituindo-o pelo conceito da "nação de sangue". É dela que fala Putin quando alega defender as "minorias russas" no exterior. Mas essa música tem história.

Do ponto de vista conceitual, o paralelo apropriado para a anexação russa da Crimeia encontra-se na invasão dos Sudetos pela Alemanha nazista. Sudetenland é a palavra alemã que designa as regiões descontínuas da antiga Tchecoslováquia habitadas majoritariamente por populações germanófonas. Na primavera de 1938, os nazistas dos Sudetos deflagraram a agitação autonomista que serviria como pretexto para Hitler exigir a transferência das regiões para a Alemanha. Os primeiros-ministros britânico, Chamberlain, e francês, Daladier, curvaram-se ao ultimato alemão na célebre Conferência de Munique. A Rússia de Putin não é, evidentemente, a Alemanha de Hitler –mas a "nação de sangue" é o que é, hoje como ontem.

Slaughter percorreu quase toda a trajetória discursiva formulada por Putin, sugerindo que a anexação da Crimeia assemelha-se à intervenção da Otan em Kosovo, em 1999. O paralelo não poderia ser mais falso. Na Crimeia, nenhuma ameaça erguia-se contra a população russófona; na província sérvia, pesava sobre os albaneses étnicos o espectro de massacres em massa. A secessão da Crimeia funcionou como disfarce para a anexação; Kosovo não foi anexado, tornando-se independente dez anos mais tarde, por decisão parlamentar democrática. O paralelo certo para Kosovo é Ruanda: sem a intervenção ocidental, o mundo assistiria a um outro genocídio.

Uma coisa é admitir, realisticamente, que a Crimeia não tem volta; outra, bem diferente, é justificar a anexação. Hoje, destacamentos de ativistas invadem edifícios de governo em cidades do leste da Ucrânia, exigindo plebiscitos sobre a secessão, enquanto Putin fala em "guerra civil" e concentra 50 mil soldados na fronteira russo-ucraniana. A "nação de sangue" tem uma lógica inflexível: aquilo que vale para a Crimeia, vale também para a Sudetenland russa na Ucrânia oriental. Slaughter e seus seguidores irão até o fim na remontagem da peça encenada por Chamberlain e Daladier?


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