Folha de S. Paulo


Desafiando o vodu dos juros

Por fim, alguém ousou tirar do armário um tema (a conta dos juros no Brasil) que parece o belzebu, aquele que ninguém ousa dizer o nome, certamente pela avassaladora hegemonia do que os argentinos chamam, com toda razão, de a "patria financiera". Refiro-me à entrevista à Folha de Paulo Rabello de Castro, o novo presidente do IBGE, liberal de carteirinha e um dos poucos economistas que ousam pensar muito além da página 2 dos manuais ortodoxos de economia.

Afirma, por exemplo: "Enquanto isso, outro grupo de teorizadores diz que, para que o mundo não caia sobre nossas cabeças, temos que praticar a taxa de juros mais elevada do mundo, pois esse é o remédio universal". Completou: "Para mim, isso e tratamento numa clínica vodu são o mesmo".

Bingo.

Algo parecido escrevi 13 anos atrás, em janeiro de 2003, após cruzar em Davos com Henrique Meirelles, recém-empossado presidente do Banco Central do também recentíssimo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Lula/Meirelles haviam elevado os juros de já indecentes 25% para obscenos 26,5%, apesar de o petista, quando na oposição, criticar acerbamente os juros elevados.

Perguntei a Meirelles como ele fizera para convencer Lula a subir ainda mais os juros. Contou que dissera a Lula que, sempre que a inflação chega aos dois dígitos no Brasil, ela dispara. Logo, era preciso uma dose cavalar de juros para controlá-la. Não parecia ciência e, sim, fazer política econômica jogando búzios. Afinal, não está nas Escrituras que a inflação sempre dispara ao atingir os dois dígitos (depende, como é óbvio, das circunstâncias de cada momento).

O resultado desse jogo de búzios (ou da clínica de vodu, como prefere Rabello de Castro) é evidente: "De 1999 até hoje, a dívida pública está quase duas vezes superior ao que poderia estar se estivéssemos praticando uma taxa de juros neutra. Isso sustenta um rentismo financeiro", comentou o presidente do IBGE.

Tanto sustenta que a "bolsa-juros" rende aos rentistas em um ano o que o governo dedica à Bolsa Família em 14 anos.

O mais elementar sentido comum diria que não é razoável que se dê aos mais ricos 14 vezes mais que o que vai para os pobres entre os pobres. No entanto, ninguém nem sequer discute os juros.

É importante saber que é falsa a disseminada sensação de que o governo gasta mais do que arrecada, do que decorreria a crise das contas públicas.

Escreve Petronio Portela Nunes Filho, da assessoria parlamentar do Senado Federal: "A origem do desequilíbrio não esteve [de 1997 a 2015] no orçamento primário [receitas menos despesas, fora juros], que foi superavitário em todos esses anos, exceto em 1997 e no biênio 2014/15".

De fato a média do "lucro" do governo nesse período todo foi de 1,5% do PIB. O que gera o buraco é o pagamento dos juros (média de 4,2% do PIB em idêntico período).

Tem alguma racionalidade discutir o corte de aposentadorias, que já são minguadas, e não discutir simultaneamente o corte do gasto maior, que é com juros?

crossi@uol.com.br


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