Folha de S. Paulo


Quando o crime compensa

Martin Winterkorn renunciou ao cargo de executivo-chefe da Volkswagen depois que se descobriu um tremendo trambique da companhia, que fingia reduzir a emissão de poluentes em seus motores a diesel, o que só era verdade nos testes obrigatórios, mas não na vida real.

Um gesto digno? Seria, não fosse pelo fato de que Winterkorn receberá um pote de dinheiro, a título de aposentadoria (€ 28,57 milhões ou R$ 132 milhões).

É um típico caso de abuso que o capitalismo tolera (ou estimula?).

As almas mais caridosas (ou mais capitalistas) dirão que, enfim, o executivo renunciante não matou ninguém, não roubou dinheiro da Petrobras ou de alguma estatal alemã, não violentou nenhuma de suas empregadas, certo?

Não tanto, como lembra a revista "The Economist", que não chega a ser propriamente socialista.

Na sua reportagem de capa, exatamente sobre o caso Volkswagen, a revista lembra que "emissões de óxidos de nitrogênio e outras impurezas dos escapamentos de carros e caminhões causam grande número de mortes prematuras –talvez 58 mil por ano só nos Estados Unidos, como sugere um estudo".

Portanto, conclui a revista, "o escândalo que envolveu a VW nesta semana não é um delito menor ou um crime sem vítimas".

Claro que almas caridosas sempre poderão dizer que não foi Winterkorn quem, pessoalmente, foi desligando os mecanismos eletrônicos que reduziam as emissões de poluentes dos veículos.

Mas as almas não tão caridosas responderão que é impossível que um esquema tão maciço de fraude seja implementado sem o conhecimento da alta direção da empresa.

O pior é que se trata de criminosos em série.

Zeynep Tufekci, professora assistente na Escola de Informação e Biblioteconomia da Universidade da Carolina do Norte, lembra, pelo "The New York Times", que Ford, Honda, General Motors, Caterpillar, Volvo e Renault já foram multadas devido a esquemas semelhantes.

O "Financial Times", por sua vez, como quem não quer nada, diz que a BMW e a Daimler, duas das outras grandes grifes da engenharia alemã, "também produzem carros com motores a diesel", os que estão no centro do atual escândalo.

Ainda no "Financial Times", John Gapper escreve que "a indústria automobilística não está sozinha em tal comportamento. A mesma coisa acontece em muitas indústrias, dos bancos às farmacêuticas".

Funciona desta maneira, segundo Gapper: "Umas poucas companhias decidem, suavemente, entortar as regras e dar elasticidade às regulações, e outras [companhias] logo seguem [o procedimento trambiqueiro]".

As companhias sabem que é "um pouco problemático", mas se torna "prática normal, e os reguladores fecham os olhos", até que, um dia, "alguém vai longe demais e o escândalo estoura".

Quando isso acontece, a companhia pode sofrer graves prejuízos, como está ocorrendo agora com a Volkswagen, mas o executivo-chefe –e, como tal, principal responsável– vai gozar de uma aposentadoria dourada.

Enquanto o capitalismo continuar passando a mão na cabeça de trambiqueiros, pode ser o vencedor, mas não será o queridinho das massas.


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