Folha de S. Paulo


Não dá para empacotar tristezas no invólucro da depressão

Recebi na semana passada uma simpática carta de Terêncio Hill, 77 anos. "Coisa fora de moda no mundo do Twitter e das poucas palavras", conforme ele escreveu.

A mensagem trazia comentários sobre uma coluna em que tratei do tema tristeza e depressão na velhice. Os argumentos dele são muito pertinentes e me inspiraram na resposta.

Abaixo, nossa troca de mensagens:

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Cara Cláudia,

Os exemplos que você cita no artigo, de pessoas que mantêm o "pique" e seus hábitos saudáveis, são importantes. São modelos admiráveis para quem pode. Mas sua conclusão me intrigou.

A tristeza não é um fato comum na vida humana? Todos não ficamos tristes com as coisas que acontecem? Na vida toda ficamos tristes sobre os mais variados acontecimentos e fatos. A gatinha morre, a filha ou a neta não passa no vestibular, perde-se um processo no Judiciário, um amigo muda-se para Goiás.

Essas tristezas são normais (confesso que, nessa altura do campeonato, nem tenho clareza do que significa "normal").

Hoje em dia, podemos achar normal ficar triste com o andamento da economia ou observar a histeria coletiva sobre a pessoa da presidente e uma crise incitada em parte pela elite e pela imprensa em geral por motivos explicáveis.

Mas vejo, também, que os idosos têm mais um motivo do que a maioria dos humanos para entristecer. Amigos morrem, a gente tropeça e cai na calçada, levanta menos peso na academia. Sabemos que o fim está chegando, pouco a pouco. Haverá a separação final. Ou não? Com isso, surgem questões sobre as "últimas coisas", que facilmente implicam término e tristeza.

É mais do que saudável reconhecer e assumir tristezas do que negá-las. Parece-me que pode ser considerado normal termos momentos, períodos, de tristeza. A [dita] melhor idade não é, de jeito nenhum a melhor idade.

Um abraço,

Terêncio

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Caro Terêncio,

Obrigado pela carta. Achei ótimas as suas reflexões, mas permita-me algumas considerações. Sim, são absolutamente normais momentos de tristeza. Quando escrevi sobre a "tristeza" dos idosos, referi-me à depressão, que muitas vezes é subdiagnosticada. Existe uma ideia bastante arraigada de que a depressão é um fato "normal" na velhice. Não é.

Depressão não é só uma tristeza passageira, diante de um fato adverso da vida. É uma tristeza profunda e duradoura, acompanhada de desânimo, apatia, desinteresse, impossibilidade de desfrutar dos prazeres da vida. A pessoa não se interessa pelas atividades diárias, não dorme bem, não tem apetite. Podem aparecer ainda pensamentos "ruins", como ideias de culpa, inutilidade e desesperança.

Há alguns anos, Terêncio, minha mãe passou por isso. Quebrou o tornozelo, ficou dois meses (se não me engano) sem colocar o pé no chão. Idosa mais do que ativa, ela foi ficando triste com a situação de imobilidade. Começou a emagrecer e, aos poucos, foi deixando de ser a mulher alegre que sempre foi. O diagnóstico de depressão foi até rápido, mas houve alguma demora em acertar o antidepressivo correto. O primeiro não trouxe efeito positivo algum. O segundo foi certeiro. Em menos de um mês, lá estava minha mãe de volta. Acredite, meu caro, a depressão é ainda é um tabu, especialmente na velhice.

Por outro lado, é claro que hoje existe uma excessiva medicalização da vida. Tristezas e angústias parecem vírus que devem ser rapidamente aniquilados, combatidos com um remedinho. Em seu livro "O tempo e o cão" (Boitempo Editorial, 2009), a psicanalista Maria Rita Kehl fala da "privatização da melancolia" e do aumento das depressões nos últimos anos.

Diz que a ampliação do alcance da indústria farmacêutica não só influi no aumento dos diagnósticos de depressão, como também e principalmente difunde uma versão medicalizável de qualquer forma de inquietação, tristeza, oscilação de ânimo ou "inadaptação aos padrões de comportamento que caracterizam a vida costumeiramente representada em comerciais de margarina na televisão". Hoje há claramente um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais.

Existem ainda outras ciladas. Os efeitos colaterais de algumas medicações ou a interação de vários remédios (fato muito comum na velhice) muitas vezes conseguem ser piores do que o próprio problema de saúde original. Por isso, um diagnóstico bem feito é fundamental. E alternativas não medicamentosas, quando possível, melhores ainda.

Sim, Terêncio, as tristezas, as dores, fazem parte da vida. Da minha, da tua, da nossa.

Após anos de análise, sou partidária da ideia de que a dor pode ser, inclusive, um processo bastante criativo se você tiver um posicionamento ativo em relação a ela. O sofrimento precisa ser acolhido, pensado e vivido –jamais negligenciado. O desejo de fugir da dor, em momentos de desespero, é algo normal e legítimo. Por isso há tanta gente vivendo à base de antidepressivos e ansiolíticos, que, quando bem indicados, repito, são ótimos aliados. Mas não acho que o caminho seja empacotar todas as tristezas no invólucro da depressão e contar com a pílula como tábua da salvação.

Um abraço,

Cláudia


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