Folha de S. Paulo


Ceia de Natal

RIO DE JANEIRO - Indo mais uma vez contra a maré. Já se disse quase tudo sobre os crimes do regime militar. A Comissão Nacional da Verdade, apesar de suas boas intenções e das qualidades cívicas de seus membros, não está agradando a todos.

Há uma geral desconfiança de cada brasileiro, principalmente os que viveram os anos das violências sofridas –inclusive com inúmeros mortos e desaparecidos–, sobre a punição dos culpados.

Falo por mim. Perdi dois empregos, tive a casa invadida, fui preso seis vezes, respondi a meia dúzia de processos, minhas duas filhas foram ameaçadas de sequestro e estupro, fui processado pelo ministro da Guerra –mais tarde presidente da República–, segundo a Lei de Segurança Nacional.

Quando tive oportunidade, e graças ao Antonio Callado –que também seria preso alguns dias depois–, exilei-me em Cuba. Mas me sinto obrigado a dar um depoimento que, como disse, vai contra a maré.

Neste último Natal, pensei muito em 1968. No mesmo dia em que foi promulgado o AI-5 (13 dezembro de 1968), me prenderam no quartel do Batalhão de Guarda, em São Cristovão, tendo como companheiro de cela o maravilhoso Joel Silveira. Não fomos torturados mas sacaneados e ameaçados em tempo integral. Ouvíamos os gritos medonhos dos torturados,

No dia do Natal, depois do jantar miserável servido na hora regulamentar, entraram na cela quatro soldados trazendo a tradicional ceia, uma garrafa de vinho nacional, pedaços de peru e presunto, nozes, castanhas, passas, rabanadas –uma ceia completa para dois infelizes da classe média.

Mais tarde, o coronel comandante (não lhe guardei o nome), veio trazer seus votos de feliz Natal e indagou se tínhamos gostado da ceia. E informou: "Foi a mesma que minha mulher preparou lá em casa".


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