Folha de S. Paulo


Peixe-banana

08.02.00 - Em navegação. Dia lindo, dia perfeito para o peixe-banana --sem nada a ver com o conto de Sallinger. Sol o tempo todo, brisa, mar calmo, céu azul, mas sem exagero. Pensei em trabalhar um pouco, mas me deu preguiça. No fundo, tenho vergonha de ter chegado à condição de idoso, com direito a não pagar ônibus e furar filas no guichê dos bancos, mas continuar dando murro em cima de um laptop que custei a dominar. Há muito não ando de ônibus e tenho uma secretária para ir aos bancos. Mesmo assim, fico deprimido quando tenho de entregar o texto que a editora está me cobrando.

Tomei sol no convés da popa e dormi um pouco --coisa rara pois não sou de dormir por ai. Caminhei 45 minutos no deque de cima. Almoço de rotina, e de repente, uma chateação: os charutos que comprei ontem, na escala que o navio fez em Barcelona, custaram tão caro e não são cubanos!

Já deixei de encomendar charutos aos amigos que viajam porque, apesar das minhas recomendações, eles sempre compram contrafações dos grandes puros, como Montecristos, Upmanns, Partagas e Romeos y Julietas, nem de Coíbas gosto, nem dos Davidoffs que volta e meia me dão. Já quebrei a cara e perdi dinheiro com essas encomendas. Daí que não posso me perdoar ter comprado charutos errados. Na pressa, tendo de trocar dólar numa casa bancária ao lado da charutaria, com raiva porque o charuteiro não tinha nenhum cartão de crédito, esqueci de verificar a caixa e o selo de consumo de Cuba.

Por sorte, deixei de comprar a caixa inteira, só trazendo dez charutos, provavelmente feitos em Honduras, Costa Rica ou República Dominicana, com fumos bastardos que parecem capim sem cheiro e sem sabor.

Fui fumar o falso Havana no deque das lanchas, no dia perfeito para o peixe-banana, o mar fica mais bonito ali pelas 14h, com o sol dourando as águas, sem vista da terra, a marcha lenta e majestosa do navio, meus melhores momentos em viagens é justamente quando estou sozinho no imenso deque, indo e vindo no ritmo das ondas, corpo descansado e satisfeito, e posso curtir meu Havana em paz, sem pensar em nada, apenas no momento em que estou ali, no meio do oceano, sozinho, cercado de azul e sol.

Pois descobri logo nas primeiras baforadas, que o charuto era infame, sem nada daqueles a que estou habituado e que são, há muito, meu único vicio material --bebo cada vez menos, não jogo, meus vícios são todos de dentro, me custam a vida mas nada custam ao bolso.

Estou agora na cabine 107, boa cabine, na categoria top do navio. Das três janelas e da porta que dá acesso à varanda, vejo o mar, as ondas que passam para trás enquanto o navio avança em direção à costa onde a Europa termina. Deixamos Barcelona ontem à noite e já devemos estar em águas italianas. Amanhã (o navio não afundando), há a última escala em Gênova, terra de Colombo, dos Dórias, daquele cardeal Giuseppe Siri que queria ser papa a todo custo. Entrevistei-o quando estava aberta a sucessão de Pio 12.

Em 1996, no Royal Viking Sun, comecei "O Piano e a Orquestra", que praticamente acabei ainda a bordo. Foram 15 dias seguidos, mas o Caribe é um saco, aquelas ilhas nada me dizem, e eu estava motivado para escrever aquele romance sobre o Francisquinho. Agora é diferente. Não pretendo pegar o "Messa pro Papa Marcello" tão cedo, preciso antes chegar a algumas conclusões a respeito de mim mesmo, de minha fase terminal, do sentido último de uma vida sem sentido, ou quem sabe? Com tantos sentidos que ficou sem sentido.

Aproveitando a frase de Santo Agostinho, diria que me perco e me salvo nas cavernas incalculáveis da memória. Esta podia ser a sinopse única para tudo o que escrevi até agora. Para o próximo livro terei de dar um passo adiante.

Mas está bom, aqui na cabine Rimini, escrever no laptop diante do mar, sentindo o gosto salgado do mundo. Meus olhos saem da telinha e contemplam a linha do horizonte que divide os dois tons de azul, tudo mergulhado num "nastro d'oro", pulsante, bem diferente daquele "nastro d'argento" da canção napolitana que conduz à melancolia.

Não sou bom viajante. Principalmente quando sou obrigado a fumar charutos de capim que não me alegram nem o coração nem o gesto.


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