Folha de S. Paulo


Pró-Serra

Com Copa ou sem Copa, quem acompanhou os noticiários político e econômico nos últimos dias pôde perceber que eles não só se agitaram como também ficaram para lá de "quentes". Não houve trégua.

No caldeirão específico da cobertura sobre a sucessão presidencial, na última semana a Folha escorregou, objetivamente, de encontro ao seu princípio básico de um jornalismo apartidário e pluralista: inclinou-se para um alívio à candidatura Serra.

Algo semelhante ao que acontecera, em sentido inverso -favorável ao PT-, em meados do mês passado, conforme apontei aqui na coluna de 26 de maio.

Antes de ir ao ponto, porém, cabe lembrar um fato nada inédito e cada vez mais assumido: a maioria esmagadora das forças da mídia tem-se colocado a favor da candidatura do Planalto.

O "Estado de S.Paulo", por exemplo, uma vez formalizada a candidatura Serra nas convenções do fim de semana, publicou editorial inequívoco na última segunda-feira, sob o título "A união em torno de Serra".

Nesse texto, entre inúmeros elogios, considera-se o ex-ministro da Saúde "o melhor dos candidatos que se apresentaram para o pleito de outubro".

Como registrei em comentário interno no mesmo dia, trata-se de um direito seu, restando ver até que ponto o engajamento formal deformará o noticiário.

EXEMPLOS

Na edição de segunda-feira da Folha, três das seis páginas sobre sucessão traziam manchetes para o presidenciável do PSDB. Para evitar esse efeito de "boletim tucano", pelo menos uma delas, a da entrevista com Renata Covas Lopes, filha do ex-governador Mário Covas (1930-2001), poderia ter sido adiada.

Na quarta-feira, mais do que qualquer outro jornal, a Folha mergulhou em cheio na informação de que a coligação PT-PL estava "sepultada", embora registrasse que Lula ainda faria uma ""última tentativa de viabilizar a aliança". Ao lado desse noticiário, uma outra manchete: "Serra deve ter 41,8% do tempo no rádio e na TV".

Como se viu no dia seguinte, o espaço para uma reviravolta em favor da aliança, ainda que essa possa vir a ser de novo questionada, era maior do que aquele que o noticiário do jornal permitia antever.

O caso Santo André -acusações formais de cobrança de propina pela prefeitura petista com propósito de reforçar o caixa de campanha eleitoral- apareceu na edição SP de quinta-feira.

Diferentemente do que fez o "Estado de S.Paulo" (que trouxe nesse dia material mais completo sobre o caso), a Folha não conseguiu dar nenhum "outro lado" das pessoas denunciadas, nem mesmo do PT. Tentou obtê-los, e informou os leitores dessa tentativa, mas, objetivamente, fracassou (registre-se que as versões dos envolvidos na denúncia apresentada pelo Ministério Público foram devidamente publicadas pelo jornal na sexta-feira).

CASO JOBIM

Um outro caso relevante da semana, de natureza delicada para a candidatura Serra, foi a derrubada, pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Nelson Jobim, de uma liminar que suspendia a convenção do PMDB do sábado 15.

Resumindo: os oposicionistas do partido haviam obtido na noite da sexta-feira (14) uma liminar do ministro Sálvio de Figueiredo (do TSE) suspendendo o encontro. Na madrugada do sábado, a cúpula do PMDB (governista) esteve na casa de Jobim (que é ex-deputado pelo partido, além de ter amizade pessoal com Serra) e obteve, dele, a derrubada da liminar, decisão que viabilizou a convenção e a aprovação formal da aliança com o PSDB.

A Folha e o "Correio Braziliense" registraram de forma crítica no domingo toda essa célere movimentação noturna.

Mas havia uma diferença na apuração dos fatos. O jornal do DF informou que Jobim não só recebera os políticos em hora bizarra e concedera sua decisão em tempo "recorde", como também (e aqui está a diferença nos noticiários) orientara os peemedebistas sobre como proceder, em termos jurídicos, para efetivamente abaterem a liminar.

Diz o texto do jornal: ""Não façam um recurso", explicou Jobim. "Porque vai para o mesmo ministro. Ele pode negar e aí, já viu. Entrem com um agravo regimental e um mandado de segurança contra a liminar, porque aí vem direto para mim", continuou".

Na segunda, a Folha chegou a falar que Jobim "manifestou (aos peemedebistas) dúvida sobre a fundamentação da liminar". E publicou quadro sobre as polêmicas decisões pró-Serra anteriores de Jobim e do TSE. Mas não foi além disso.

Em coluna publicada na terça-feira, o diretor de Redação do "Correio", Ricardo Noblat, destaca, corretamente, que a atuação de Jobim como uma espécie de "consultor jurídico" de ex-correligionários tem mais relevância política e pode implicar mais consequências, do ponto de vista de eventual irregularidade, do que a celeridade com que o ministro atuou no caso.

EQUILÍBRIO

A mídia negligenciou esse aspecto, limitando-se, no que diz respeito especificamente a ele, a publicar o desmentido de Jobim (o ministro admite ter recebido o grupo político em sua casa de madrugada, mas nega ter-lhe dado orientação judicial).

Até mesmo os adversários de Serra circunscreveram suas queixas e acusações à bizarrice do horário e à velocidade da tomada de decisão. E assim foi pelo menos até ontem.

Enfatizando que o jornal deu tratamento crítico às atitudes de Jobim, o editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva, não considera que esse assunto tenha se encerrado.

"Avalio que deve continuar a ser uma das preocupações da editoria, mas não vejo aí configurada nas páginas do jornal nenhuma opção editorial a favor de José Serra", diz o editor.

INCLINAÇÃO

Impulsos a Serra no noticiário já se haviam acumulado, a rigor, no final de semana anterior.

No sábado 8, publicaram-se as declarações do megainvestidor George Soros, segundo as quais as alternativas para o Brasil são Serra ou o caos.

Furo jornalístico de primeira grandeza -mérito do repórter-, de publicação obrigatória, ninguém tem dúvidas, porém, quanto ao beneficiário de tal "profecia" (mas, até aí, trata-se de fatos, afirmação registrada, e os adversários de Serra que tenham paciência).

No dia seguinte, publicou-se pesquisa Datafolha com crescimento de Serra e queda de Lula; redução de sete pontos percentuais na diferença entre os dois. E aqui houve viés.

Ele não residiu na divulgação do levantamento, claro, mas na forma como se editou o resumo de seus dados num quadro do alto da capa do jornal.

À parte as curvas do total de intenção dos votos, destacaram-se nele variações relativas a aspectos complementares.

O único candidato presenteado com um dado positivo foi Serra (8 pontos a mais no Nordeste). Os demais receberam só dados negativos (Lula caiu 15 pontos entre os que ganham mais de R$ 2.000; Ciro caiu sete entre os eleitores com mais de 60 anos; Garotinho caiu cinco entre os de nível universitário). Ora, Garotinho, por exemplo, subira 3 pontos na região Centro-Oeste. Por que não ter destacado esse dado?

Pior: os números e as setas coloridas (verde para Serra, vermelhas para os outros) apareciam, no quadro, em tamanho grande, enquanto a especificação ("entre os eleitores do Nordeste", por exemplo) vinha embaixo, pequenininha. Onze leitores reclamaram ao ombudsman dessa indução visual.

Some-se a isso o "sumiço" do caso Ricardo Sérgio (ex-arrecadador tucano) das páginas do jornal, e tem-se um quadro objetivo mais completo.

Entendo, como afirma o editor de Brasil, que não se trata de uma opção editorial. Não se aponta, aqui, uma intenção de caráter conspiratório. Constata-se, sim, uma sequência de definições editoriais (válidas, em alguns casos, se vistas isoladamente) que acabou por configurar tendenciosidade no noticiário.

O leitor não trabalha com base nas intenções, mas naquilo que encontra nas páginas da publicação. É o que conta e fica. Não custa lembrar que é esse, também, o critério da História.


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