Folha de S. Paulo


Antes do ringue

Os lutadores não se trocaram. Nem sequer mediram o peso. Experimentam luvas, conversam com auxiliares, buscam concentração, estudam golpes, cada qual no seu vestiário.

Troca de olhares agressivos, já fizeram; e enviaram, por terceiros, mensagens desafiadoras. Mas a hora do confronto aberto ainda não chegou -e ninguém sabe ao certo, inclusive entre os organizadores, se ele, de fato, vai acontecer.

Lá dentro, porém, no ginásio, um grupo de pessoas já acende as luzes, limpa o chão do ringue e suas cordas, aciona microfones e começa a chamar os atletas:

"Vamos lá, pessoal. O povo tem pressa. Está tudo pronto. Definam logo esse troço!".

Assim pode ser retratada a atuação, por um lado, dos pré-candidatos do PSDB à Presidência da República e, por outro, da maior parte da imprensa.

Há visível ansiedade, nos jornais, em especial na Folha, pela definição da candidatura palaciana. E essa ansiedade produziu, nos últimos dias, ao menos três problemas.

O "PÚBLICO"

Desde o último dia 16, não houve uma única edição em que o assunto -Tasso Jereissati versus José Serra, o ministro Paulo Renato correndo por fora, destrambelhado pela greve nas universidades federais- não ocupasse no mínimo uma "cabeça de página" (o título principal).

Uma semana antes do evento promovido pela família Covas em São Paulo, segunda-feira, para "lançar" o governador cearense, já os holofotes se concentravam nisso.

A própria Folha, em editorial do dia 19, não escondia sua posição: "O público tem o direito de ter acesso ao que os governistas têm a dizer sobre esse e outros grandes temas que estarão em jogo no ano que vem".

Mas quem é "o público", aqui?

Até o momento, qualquer pesquisa não deixará de mostrar que a população não está ligada, ainda, na sucessão presidencial.

Na verdade, há uma necessidade dos "agentes econômicos e políticos", incluída a imprensa, de se situar o quanto antes. Eis o "público".

Isso justificaria o exagero com que o jornal abordou o embate em gestação, ainda mais se considerando o fato de que os pré-candidatos tucanos vêm tendo, até o momento, péssimo desempenho nas pesquisas eleitorais?

Da perspectiva dos tais "agentes", talvez sim. Há mesmo pressa. Mas certamente não para a grande maioria dos leitores.

O segundo problema dessa excessiva dosagem de PSDB/Planalto está em que ela, obrigatoriamente, fez o jornal subestimar assuntos relevantes.

A edição de quinta (25) foi exemplar. Nesse dia, a Folha deixou de dar pelo menos três notícias de peso: 1) o bloqueio, pelo Tribunal de Contas da União, de bens da empreiteira OAS no caso da construção do aeroporto de Salvador (BA); 2) a autorização, pela Justiça, da quebra do sigilo telefônico do lobista Alexandre Paes dos Santos; e 3) a decisão de bloqueio da aposentadoria do juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto.

REALIDADE E "PLANTAÇÃO"

O editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva, avalia que, "de todas as incógnitas do processo sucessório, a maior neste momento é a definição do nome que será apoiado pelo governo e o futuro da aliança que sustenta FHC".

"Esse imbróglio, que vinha sendo cozinhado em banho-maria, esquentou a partir da movimentação de Tasso, que, na prática, pôs sua candidatura nas ruas para testar sua viabilidade", explica. "O contra-ataque de Serra, candidato não-declarado, foi imediato."

O editor conclui: "Do desfecho dessa guerra velada dentro do governismo depende o futuro da aliança e até mesmo o destino das candidaturas Itamar e Ciro, já que a do PT parece consolidada. É natural, portanto, que os esforços do jornal se concentrem nessa disputa, procurando elucidar os lances e bastidores de uma trama intrincada".

Tem lógica e faz sentido. Mas justamente aí reside o terceiro problema: o jornal não tem conseguido explicar à altura, proporcionalmente ao espaço que reserva ao assunto, o que de fato se prepara nos vestiários.

Noticiam-se movimentações à exaustão, diariamente, como se a Folha fosse um palanque à disposição dos tucanos, mas quantos leitores já entendem qual o jogo de FHC (o que é verdade e o que é mera "plantação" de notícia por parte do Planalto quanto a suas preferências)?

Quantos leitores fazem idéia de quem realmente apóia quem nesse embate?

Que projeto Tasso representa? E Serra? E Paulo Renato?

Que alianças partidárias, com esses nomes à frente, seriam capazes de derrotar Lula ou, em hipótese mais remota, Ciro Gomes ou Itamar Franco?

A coluna Mônica Bergamo informou segunda que uma pesquisa que a mídia vinha divulgando com números favoráveis a Serra em relação a Tasso sem lhe definir a origem fora na realidade encomenda dos "serristas". O jornal foi atrás? Não.

Com páginas e páginas sobre o assunto, expondo sua própria ansiedade, até o momento a Folha ficou na superfície, apenas estimulando, lustrando o ringue, chamando a que se o adentre.

Não explicou, até agora, o que se passa nos vestiários, no aquecimento, na composição do sangue dos lutadores. Isso sim, em última instância, teria sido capaz de justificar tanto papel e, também, diferenciar o jornal de seus concorrentes.

A BACTÉRIA QUE NÃO HOUVE

Uma precipitação ou uma falha de comunicação -ou as duas coisas juntas, não se sabe ainda ao certo- acabou gerando, no início da semana, um caso jornalístico memorável, proporcionado em especial pelo jornal "O Globo" e pelo "The New York Times".

No sábado (20), o jornal do Rio escancarou manchete de duas linhas, com letras garrafais, na sua primeira página: "Sede do NY Times no Rio recebe carta com bactéria".

Referia-se a correspondência entregue à representação do diário norte-americano supostamente com "esporos como os do antraz", segundo relato feito no dia anterior, na internet, pelo próprio jornal de Nova York. Este, por sua vez, teria se baseado em parecer da Fiocruz.

No domingo, o desmentido, também duas linhas na capa: "Carta ao "New York Times" não tem bactéria antraz".

O "Jornal do Brasil" também deu manchete (menor) ao assunto no sábado e publicou no dia seguinte a negativa, com menos destaque.

A Folha, em sua edição nacional do sábado, foi mais discreta, mas trouxe título de conteúdo semelhante ao do "Globo": ""NY Times" no Rio de Janeiro recebe carta com bactéria"; providencialmente, trocou o título, na edição SP, para "Rio investiga carta com bactéria...".

Tão discreto quanto a Folha, mas mais cauteloso, foi o "Estado de S. Paulo": ""N.Y. Times" relata envio de antraz a seu repórter no Rio".

Por trás dessa confusão esteve, ao que tudo indica, um mal-entendido entre o escritório do "NYT" e a Fiocruz, que nega ter informado ao jornal que havia no envelope uma bactéria semelhante ao antraz.

Além disso, é difícil supor que o "Globo" tenha bancado tão vigorosa e arriscada manchete sem o respaldo de alguma opinião oficial.

A atitude do jornal do Rio, de todo modo, ao publicar de imediato a negativa com destaque proporcional à notícia não-confirmada da edição anterior, merece registro positivo.

Contam-se nos dedos de uma mão os exemplos de retratação tão imediata e clara por parte da imprensa.

O episódio deve servir de lição na cobertura do bioterrorismo, que já vinha padecendo de boa dose de sensacionalismo -ingrediente que só favorece quem quer criar o pânico. Em casos como esse, nem mesmo eventuais palavras oficiais podem ser definitivas. O melhor, mesmo, antes de publicar qualquer coisa, é aguardar o martelo final dos cientistas.


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