Folha de S. Paulo


Contradizer é ir contra, mas também escapar ao conforto dos consensos

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Exposições - em código - SECRET CODES - Cildo Meireles e Samuel Beckett
"Quad", peça para a TV de Samuel Beckett

Ao desembarcar de um voo entre Lisboa e Paris, fui conduzido com os outros passageiros ao controle de passaportes. É uma viagem que tenho feito nos últimos anos e que, até os atentados recentes, não incluía a passagem pela imigração.

Quando chegou a minha vez, perguntei ao agente no guichê a razão da mudança, já supondo a resposta, mas não o tom.

O agente olhou bem na minha cara e perguntou de onde eu vinha. De Lisboa, respondi. Ele sorriu: "De Lisboa?". E aí levantou a voz para os colegas: "Parem tudo! Este senhor aqui veio de Lisboa e está dizendo que nos enganamos, não podíamos estar fazendo o controle de passaportes!". Os colegas o ignoraram, constrangidos. Ele se voltou para mim: "O senhor talvez não saiba que há um tal de Hollande dando as ordens. Eu não escuto o que ele diz, mas foi ele quem instituiu esse controle de passaportes, por motivos de segurança".

Não dá para saber até que ponto o agente de imigração não escuta o que diz François Hollande porque já não o suporta ou porque, mais que isso, escuta o que diz Marine Le Pen. A rejeição ao governo socialista francês é tão impressionante quanto a adesão à Frente Nacional, o partido xenófobo de Marine Le Pen, que deve ficar com 25% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais, no próximo domingo (23), segundo as pesquisas.

O que dá para dizer é que, às vésperas de um pleito com consequências potenciais gravíssimas, e não apenas dentro das fronteiras nacionais, os ânimos franceses estão exaltados. É como se a reação do agente anunciasse as mudanças com as quais ele já conta para agir oficialmente de um modo que hoje ainda constrange os colegas.

Levei dois livros naquele voo: "Fábulas da Ditadura", estreia literária de Leonardo Sciascia, em 1950, que acaba de sair na França em edição bilíngue, e "Nas Margens do Político", de Jacques Rancière, que, embora publicado em Portugal há alguns anos, me chamou a atenção por estar exposto em mais de uma livraria de Lisboa.

O livro de Sciascia é uma coletânea de parábolas ou poemas em prosa sobre a ambiguidade entre a autoridade ditatorial e a subserviência. O livro expõe a combinação complementar entre os opostos sob a violência das autocracias. É uma leitura perturbadora, que não oferece redenção. Na orelha, uma citação de Alberto Moravia admite haver "um pessimismo cruel e satisfeito em Sciascia, mas, como sempre, é na escrita que devemos buscar o otimismo".

Acusar um autor de pessimista, como forma de desautorizar sua obra, costuma encobrir a vontade de se fazer acolher pelo consenso, recorrendo à facilidade da adequação. Autores acusados de pessimismo são, em geral, os que escrevem o que não convém ao seu tempo. Muitos desaparecem, silenciados pelos paladinos das conveniências. Alguns ficam. Beckett e Thomas Bernhard, para citar apenas dois exemplos. A força inaugural de suas obras contradiz o pessimismo que lhes é inercialmente imputado. O que exprimem é a potência vital da contradição.

"De mim, como indivíduo que acidentalmente escreveu livros, gostaria que dissessem: 'Ele contradisse e se contradisse', como quem diz que estava vivo entre tantas 'almas mortas', tanta gente que não contradizia nem se contradizia", escreveu Sciascia. Contradizer é ir contra, mas também escapar ao conforto dos consensos e das identidades.

Para Rancière, a literatura é o contrário da identificação e da empatia hoje transformadas em parâmetros consensuais para definir e vender bens culturais. "[A literatura] cria um meio onde se expõe a indefinição que separa cada corpo de si próprio. (...) Ela introduz (...) um distúrbio na experiência perceptiva, na relação do dizível com o visível (...). O próprio-impróprio da literatura é não parar de inscrever (...) a experiência do dissenso, da impropriedade e do exílio, que liga a literatura à inquietude do múltiplo".

O conceito de política que Rancière vai defender em seguida, em oposição à política institucional, também pressupõe uma parte excedente, a parte dos que não contam: os invisíveis, os inaudíveis ou os inadequados. Nesse sentido, tanto política como literatura tratam do que não faz parte, do que não se ouve, do que não convém. Nada a ver com a representação das partes, do que já se conhece, assegurado pelo consenso que apaga o desvio e a inadequação.

No próximo domingo, o agente de imigração do aeroporto de Paris terá, afinal, a oportunidade de dizer quem é que ele escuta. E contribuir para formar um consenso cuja voz vem clamando para apagar o que o excede, o que não convém à sua identidade.


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