Folha de S. Paulo


Para cientista, pesquisar no país é pior do que ter comércio no fim do mundo

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Fazer pesquisa na área biomédica no Brasil é quase como ter um restaurante na paradisíaca praia de Corumbau (ou qualquer outro lugar remoto do mundo): você depende da importação dos reagentes para fazer seus experimentos. No caso do chef de cozinha, os reagentes são os ingredientes de cozinha.

A diferença é que, nessa nessa comparação, o chef em Corumbau, no sul da Bahia, não tem uma Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para atrapalhá-lo.

Em Corumbau até tem alguma coisa local -peixes, ovos e verduras produzidas por ali. Mas óleo, manteiga, sal, farinha, carnes especiais e temperos exóticos, todos devem vir da cidade grande.

Da mesma forma, são produzidos aqui no Brasil vários reagentes bem básicos de boa qualidade. Porém, sem importarmos outros fundamentais, não conseguimos fazer nossa pesquisa no laboratório (que não deixa de ser uma grande cozinha).

Pois bem, à medida que outros restaurantes foram abrindo em Corumbau -aumentando a demanda de produtos-, alguns supermercados se instalaram na cidade.

Assim os chefs de cozinha passaram a não ter que se preocupar em encomendar da cidade grande quantidade itens comuns como farinha, sal, óleo, manteiga, ovos etc -era só dar um pulo no supermercado e estava tudo lá. Sai um pouco mais caro do que encomendar direto da cidade grande, é verdade, mas a disponibilidade imediata dos produtos compensava o preço maior.

CIÊNCIA BRASILEIRA

No universo brasileiro da pesquisa aconteceu a mesma coisa: à medida que a nossa produção científica aumentou, várias empresas estrangeiras passaram a ter representantes aqui que mantêm em estoque os reagentes mais utilizados por nós.

Como os supermercados de Corumbau, eles são um pouco mais caros do que se importarmos diretamente das matrizes no exterior. Mas, enquanto o reagente demora três meses para chegar por importação, o produto chega na mesma semana quando compramos diretamente do representante nacional.

Em Corumbau, os chefs de restaurantes ainda precisam importar da cidade grande os ingredientes mais sofisticados e específicos de suas receitas -trufas brancas, açafrão, cerejas, e por aí vai.

Da mesma forma, nós cientistas seguimos dependentes de importar diversos reagentes fundamentais e específicos de nossas pesquisas, que, por serem muito diversos, não despertam interesse das filiais nacionais para que os mantenham em estoque.

E aí começa a areia movediça da pesquisa nacional, que tem que esperar meses para esses reagentes chegarem (já escrevi ad nauseum sobre isso)...

'BURROCRACIAS'

Recentemente a Anvisa resolveu criar uma lista de produtos que só podem ser importados por pesquisadores e instituições de pesquisa - ou seja, não podem ser importados pelas empresas que os mantêm em estoque aqui.

É como se o supermercado de Corumbau fosse proibido de vender farinha, sal, ovos, etc. para os restaurantes, que teriam que voltar a encomendar tudinho da cidade grande... Com isso, perderiam um tempo enorme fazendo pedidos e lidando com burocracias do transporte.

E como as encomendas demoram para chegar, eles teriam que fazer um estoque para não faltar nada no meio de um almoço. Só que às vezes se erra a previsão, e muitos dos produtos perecíveis -carnes, frutas e legumes- podem acabar estragando...

Da mesma forma, ao jogar nos pesquisadores o fardo de ter que voltar a importar vários reagentes básicos, a Anvisa, que regula, entre outras coisas, a entrada de reagentes no país, está atravancando ainda mais a pesquisa científica nacional e gerando desperdício de recursos (nossos reagentes comprados em grande quantidade também acabam estragando...) e do tempo precioso do pesquisador brasileiro, que passa a maior parte de seus dias a lidar com as "burrocracias" do que pensando em ciência.

Faço um apelo aos leitores: alguém topa analisar as inúmeras leis e portarias e RDCs (Resoluções da Diretoria Colegiada) para ver se a Anvisa tem direito de fazer isso?

Eu sigo convencida de que a Anvisa não tem direito de meter o bedelho em coisas de pesquisa científica que não envolva testes em humanos.

A praia de Corumbau é paradisíaca, e talvez fosse capaz de sobreviver sem grandes restaurantes. Mas o Brasil sem ciência...

LYGYA DA VEIGA PEREIRA é professora titular da USP e uma das principais cientistas do país na área de células-tronco


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